domingo, 30 de maio de 2010


Sabido é como todos os que se têm ocupado da nossa antiga poesia desdenham mais ou menos das cantigas-d'amor porque as consideram a parte mais convencional, menos portuguesa, do lirismo trovadoresco. A graça e a frescura da cantiga-d'amigo são culpadas nisso. E é assim que D. Carolina Michaëlis, no prefácio do Glossário do Cancioneiro da Ajuda, pôde dizer, em 1922, esta coisa lamentável: que guardara inédito esse Glossário durante dezoito anos, devido à indiferença com que o texto fora acolhido!

Essa opinião, estribada principalmente num vicioso conceito estético, que não mede as distâncias, e na incompreensão das delicadezas do texto, é falsa, como quase tudo o que considera apenas a superfície. Não que as cantigas-d'amor constituam uma série de obras-primas, como o não é de resto a cansó provencal, cujo modelo seguem de longe. Mas há nelas alto nível poético. Quanto ao convencionalismo, já dissemos que é isso um elemento indispensável, obrigado em toda a escola. Clássica, romântica, realista, simbolista, todas têm as suas normas, o seu sistema de formas, o seu convencionalismo, enfim, pela razão bem simples de que todas têm os seus programas; e para a execução dum programa é necessário um método.

(...) E um dos primeiros problemas a tratar, entrevisto lucidamente por D. Carolina Michaëlis, em 1897, é o de averiguar as razões que levaram os nossos trovadores àquela "propositada indiferença pela riqueza e variedade do pensamento, e tendência predilecta para a repetição e monotonia"; pois não é de acreditar que os nossos trovadores fossem menos dotados que os de outros países, depois do que dissemos acerca do banho lustral da cultura francesa, que a quase todas directa ou indirectamente atingiu. De resto, já em 1894 Lang acentuava que o paralelismo se não podia explicar por falta de individualidade ou de diligência artística, e que possivelmente a sua origem se reduziria a uma questão de forma (Das Liederbuch des Königs Denis von Portugal, XLVII).

O carácter repetitivo do nosso lirismo explica-se por razões de ordem psicológica e artística. Em primeiro lugar, a nossa poesia amorosa é mais do coração que a poesia provençal. Nesta, como vimos, a inteligência e a imaginação suprem muitas vezes a falta de emoção. Por Isso, a poesia se alonga, num recreio dos sentidos, através de seis e sete estrofes e mais ainda. O trovador compraz-se no jogo da sua fantasia, sente-se a divisória entre o artista e o homem. A nossa cantiga-d'amor dá-nos uma impressão diferente e de maior verdade psicológica.

(...) A emoção não se pulveriza em cintilações de forma artística; sempre uno, o turbilhão emocional permanece até ao fim substancialmente o mesmo, com uma ou outra modificação levíssima de forma. Isto dá à cantiga-d'amor um cunho de obsessão de monotonia pungente, que resultaria fastidiosa se fosse desenrolada em mais de três ou quatro estrofes. Talvez por isso mesmo os trovadores limitassem a este número a repartição estrófica das cantigas.

Para exprimir esta devoradora monotonia do nosso sentimentalismo os trovadores tinham já na cantiga tradicional dois elementos que habilmente utilizaram o paralelismo e o refrão, que se completam um ao outro. Se o paralelismo exige que, pelo menos no início, as estrofes se assemelhem, o refrão que é muitas vezes um verdadeiro mote e a alma da cantiga, determina necessariamente um mesmo teor para os versos que o precedem. Por outras palavras: devendo todos os versos da estrofe confluir no refrão, e sendo este, naturalmente, o mesmo ara cada estrofe, é Inevitável a repetição da ideia, com ligeiras variantes da forma.

O amor, entre nós, é uma súplica apaixonantemente triste. E não há nada que exprima tão bem esse carácter de prece do que a tautologia, a repetição necessária do apelo para alcançar um dom, que não chega mais. Por isso o nosso lirismo é por vezes um documentário precioso de poesia pura tudo se exala num suspiro, numa queixa, numa efusão exclamativa.

Rodrigues Lapa, Lições de Literatura Portuguesa, Época Medieval

Importantes cantigas

Exemplo de lírica galego-portuguesa (de Bernal de Bonaval)

No mundo non me sei parelha,
Mentre me for’como me vay
Ca já moiro por vos – e ay!
Mia senhor branca e vermelha,
Queredes que vos retraya
Quando vus eu vi em saya!
Mao dia me levantei,
Que vus enton non vi fea!
E, mia senhor, des aquel di’ ay!
Me foi a mi muyn mal,
E vos, filha de don Paay
Moniz, e bemvus semelha
D’aver eu por vos guarvaya
Pois eu, mia senhor d’alfaya
Nunca de vos ouve, nem ei
Valia d’ua correa.

_______________________________________________


"fazer agora un cantar d'amor,
e querrei muit'i loar mia senhor
a que prez nen fremusura non fal,
nen bondade; e mais vos direi en:
tanto a fez Deus comprida de ben
que mais que Quer'eu em maneira de proençal
todas las do mundo val.
Ca mia senhor quiso Deus fazer tal,
quando a faz, que a fez sabedor
de todo ben e de mui gran valor,
e con todo est'é mui comunal
ali u deve; er deu-lhi bon sen,
e des i non lhi fez pouco de ben,
quando non quis que lh'outra foss'igual.
Ca en mia senhor nunca Deus pôs mal,
mais pôs i prez e beldad'e loor
e falar mui ben, e riir melhor
que outra molher; des i é leal
muit', e por esto non sei oj'eu quen
possa compridamente no seu ben
falar, ca non á, tra-lo seu ben, al. "


Autor:El-Rei D. Dinis, CV 123, CBN 485

_______________________________________________

Proençaes soen mui ben trobar
e dizen eles que é con amor;
mais os que troban no tempo da frol
e non en outro, sei eu ben que non
an tan gran coita no seu coraçon
qual m'eu por mha senhor vejo levar.
Pero que troban e saben loar
sas senhores o mais e o melhor
que eles poden, soõ sabedor
que os que troban quand'a frol sazon
á, e non ante, se Deus mi perdon,
non an tal coita qual eu ei sen par.
Ca os que troban e que s'alegrar
van eno tempo que ten a color
a frol consigu', e, tanto que se for
aquel tempo, logu'en trobar razon
non an, non viven [en] qual perdiçon
oj'eu vivo, que pois m'á-de matar.


Autor: El-Rei D. Dinis, CV 127, CBN 489

Os principais trovadores


Dos trovadores enlencados nesses cancioneiros, o mais antigo é João Soares de Paiva, nascido em 1141, mas o primeiro de importância é Paio Soares de Taveirós, pela cantiga de amor de 1198.

Os principais trovadores foram:

D. Dinis, importante peia extensão e qualidade de sua obra (escreveu cerca de 140 cantigas líricas e satíricas), João Garcia de Guilhade (deixou 54 composições líricas e satíricas, e foi dos mais originais trovadores do século XIII), Martim Codax (trovador da época de Afonso III, legou 7 cantigas de amigo, as quais têm o mérito de constituir as únicas peças da lírica trovadoresca cuja pauta musical permaneceu até hoje), Afonso Sanches (filho de D. Dinis), João Zorro, Aires Nunes, Aires Corpancho, Nuno Fernandes Torneol, Bernardo Bonaval, paio Gomes Charinho, e outros.

Cantigas de amor


Quem fala no poema é um homem, que se dirige a uma mulher da nobreza, geralmente casada, o amor se torna tema central do texto poético. Esse amor se torna impraticável pela situação da mulher. Segundo o homem, sua amada seria a perfeição e incomparável a nenhuma outra. O homem sofre interiormente, coloca-se em posição de servo da mulher amada. Ele cultiva esse amor em segredo, sem revelar o nome da dama, já que o homem é proibido de falar diretamente sobre seus sentimentos por ela (de acordo com as regras do amor cortês), que nem sabe dos sentimentos amorosos do trovador. Nesse tipo de cantiga há presença de refrão que insiste na idéia central, o enamorado não acha palavras muito variadas, tão intenso e maciço é o sofrimento que o tortura.

Essa relação amorosa vertical é chamada "vassalagem amorosa", pois reproduz as relações dos vassalos com os seus senhores feudais. Sua estrutura é mais sofisticada.
São tipos de Cantiga de Amor: -Cantiga de Meestria: é o tipo mais difícil de cantiga de amor. Não apresenta refrão, nem estribilho, nem repetições (diz respeito à forma.) -Cantiga de Tense ou Tensão: diálogo entre cavaleiros em tom de desafio. Gira em torno da mesma mulher. -Cantiga de Pastorela: trata do amor entre pastores (pebleus) ou por uma pastora (pebléia). -Cantiga de Plang: cantiga de amor repleta de lamentos.
Exemplo de lírica galego-portuguesa (de Bernal de Bonaval):
"A dona que eu am'e tenho por Senhor
amostrade-me-a Deus, se vos en prazer for,
se non dade-me-a morte.
A que tenh'eu por lume d'estes olhos meus
e porque choran sempr(e) amostrade-me-a Deus,
se non dade-me-a morte.
Essa que Vós fezestes melhor parecer
de quantas sei, a Deus, fazede-me-a veer,
se non dade-me-a morte.